sábado, 22 de maio de 2010

Werther

Em Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), romance epistolar, Goethe problematizou a essencialidade da existência humana ao apresentar um personagem que, num processo lento e progressivo, põe fim à própria vida. A morte autodestrutiva do jovem foi construída, a cada dia, semelhante a uma doença que o envenenava vagarosamente, como pode ser observado em suas cartas ao amigo Wilhelm. Ele era consciente do avanço desse mal, mas não conseguiu detê-lo. Eis uma de minhas preferidas, a carta do dia 22 de maio (feliz coincidência) de 1771:

Maio, 22


A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou isso. Pois essa impressão também me acompanha por toda parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso labor visa apenas a satisfazer nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existencia; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranqüilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua célula... tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo.

As crianças - todos os pedagogos eruditos estão de acordo a este respeito - não sabem a razão daquilo que desejam; também os adultos, da mesma forma que as crianças, caminham vacilantes e ao acaso sobre a terra, ignorando, tanto quanto elas, de onde vêm e para onde vão. Não avançam nunca segundo uma orientação segura; deixam-se governar, como as crianças, por meio de biscoitos, pedaços de bolo e vara. E, como agem por essa forma, inconscientemente, parece-me, que se acham subordinados à vida dos sentidos.

Concordo com você (porque já sei que você vai contraditar-me) que os mais felizes são precisamente aqueles que vivem, dia a dia, como as crianças, passeando, despindo e vestindo as suas bonecas; aqueles que rondam, respeitosos, em torno da gaveta onde a mamãe guardou os bombons, e quando conseguem agarrar, enfim, as gulodices cobiçadas, devoram-nas com sofreguidão e gritam: "Quero mais!" Eis a gente feliz! Também é ditosa a gente que, emprestando nomes pomposos às suas mesquinhas ocupações, e até às suas paixões, conseguem fazê-las passar por gigantescos empreendimentos destinados à salvação e prosperidade do genero humano. Tanto melhor para os que são assim! Mas aquele que humildemente reconhece o resultado final de todas as coisas, vendo de um lado como o burguês facilmente arranja o seu pequeno jardim e dele faz um paraíso, e, de outro, como o miserável, arfando sob o seu fardo, segue o seu caminho sem revoltar-se, mas aspirando todos, do mesmo modo, a enxergar ainda por um minuto a luz do sol... sim, quem isso observa à margem permanece tranqüilo. Também este se representa a seu modo um universo que tira de si mesmo, e também é feliz porque é homem. E, assim, quaisquer que sejam os obstáculos que entravem seus passos, guarda sempre no coração o doce sentimento de que é livre e poderá, quando quiser, sair da sua prisão.

J. W. Goethe

(Você pode fazer o download do romance aqui.)

4 comentários:

  1. E os instantes perdidos com a cobiça, com o egoísmo, com a desonestidade, isso tudo é um grande equívoco, já que ao final, de modo muito passageiro e de qualquer jeito, tudo retorna a essa simplicidade, esse desenho maior sobre nós.

    Restará, pois, o sonho. Ainda que não seja enxergado por muitos, ele estará sempre lá, por baixo de alguns entulhos sociais, a confortar nossa pequenez.

    Lindo texto; digno de uma grande mestre das palavras.

    Beijos.
    Ricardo.

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  2. Querida Ane, o Máquina Lírica recebeu de ti o Selo Prêmio Dardos. Deixei a minha contribuição: a dificílima seleção de 15 blogs da lista de meus 42 preferidos. O Lacunas do Tempo foi um de meus escolhidos! Deixo aqui também a minha admiração pela tua apurada e bela sensibilidade poética.

    Um abraço forte!

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  3. Caríssima Anne, pousei aqui em teu blog a partir do Máquina Lírica, da doce Luciana Marinho. Um prazer descobrir mais um espaço onde imperam a arte, a sensibilidade, a delicadeza!!! Lindíssima a carta que publicas, especialmente o desfecho, onde o autor aponta o prazer de viver as coisas simples, a paz interior alcançada a partir mesmo do conhecimento e aceitação de que somos seres errantes, passageiros, mas presenteados com o milagre da existência! Abraços alados!

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  4. Muito feliz com vossos comentários, queridíssimos! Obrigada!

    Beijos,
    Ane

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