segunda-feira, 29 de março de 2010

Poesia satírica

Definição do Amor

Mandai-me, Senhores, hoje
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.

Dizem, que da clara escuma,
dizem, que do mar nascera,
que pegam debaixo d'água,
as armas, que Amor carrega.

Outros, que fora ferreiro
seu pai, onde Vênus bela
serviu de bigorna, em que
malhava com grã destreza.

Que a dous assopros Ihe fez
o fole inchar de maneira,
que nele o fogo acendia,
nela aguava a ferramenta.

Nada disto é, nem se ignora,
que o Amor é fogo, e bem era
tivesse por berço as chamas
se é raio nas aparências.

Este se chama Monarca,
ou Semideus se nomeia,
cujo céu são esperanças,
cujo inferno são ausências.

Um Rei, que mares domina,
um Rei, o mundo sopeia,
sem mais tesouro, que um arco,
sem mais arma, que uma seta.

O arco talvez de pipa,
a seta talvez de esteira,
despido como um maroto,
cego como uma Topeira.

Um maltrapilho, um ninguém,
que anda hoje nestas eras
com o cu à mostra, jogando
com todos a cabra-cega.

Tapando os olhos da cara,
por deixar o outro alerta
por detrás à italiana,
por diante à portuguesa.

Diz, que é cego, porque canta,
ou porque vende gazetas
das vitórias, que alcançou
na conquista das finezas.

Que vende também folhinhas
cremos por cousa mui certa,
pois nos dá os dias santos,
sem dar ao cuidado tréguas;

E porque despido o pintam,
é tudo mentira certa,
mas eu tomara ter junto
o que Amor a mim me leva.

Que tem asas com que voa
e num pensamento chega
assistir hoje em Cascais
logo em Coina, e Salvaterra.

Isto faz um arrieiro
com duas porradas tesas:
e é bem, que no Amor se gabe,
o que o vinho só fizera!

E isto é Amor? é um corno.
Isto é Cupido? má peça.
Aconselho, que o não comprem
ainda que Ihe achem venda.

Isto, que o Amor se chama,
este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira,
Este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Tróia,
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco,
este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento
é assunto dos Poetas:

Faz o sisudo andar louco,
faz pazes, ateia a guerra,
o Frade andar desterrado,
endoudece a triste Freira.

Largar a almofada a Moça,
ir mil vezes à janela,
abrir portas de cem chaves,
e mais que gata janeira.

Subir muros, e telhados,
trepar cheminés, e gretas,
chorar lágrimas de punhos
gastar em escritos resmas.

Gastar cordas em descantes
perder a vida em pendências,
este, que não faz parar
oficial algum na tenda.

O Moço com sua Moça,
o Negro com sua Negra,
este, de quem finalmente
dizem, que é glória, e que é pena.

É glória, que martiriza,
uma pena, que receia,
é um fel com mil doçuras,
favo com mil asperezas.

Um antídoto, que mata,
doce veneno, que enleia,
uma discrição sem siso,
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre,
uma liberdade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.

Uma esperança, sem posse,
uma posse, que não chega,
desejo, que não se acaba,
ânsia, que sempre começa.

Uma hidropisia d'alma,
da razão uma cegueira,
uma febre da vontade
uma gostosa doença.

Uma ferida sem cura,
uma chaga, que deleita,
um frenesi dos sentidos,
desacordo das potências.

Um fogo incendido em mina,
faísca emboscada em pedra,
um mal, que não tem remédio,
um bem, que se não enxerga.

Um gosto, que se não conta,
um perigo, que não deixa,
um estrago, que se busca,
ruína, que lisonjeia.

Uma dor, que se não cala,
pena, que sempre atormenta,
manjar, que não enfastia,
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiça,
um engano, que contenta,
um raio, que rompe a nuvem,
que reconcentra a esfera.

Víbora, que a vida tira
àquelas entranhas mesmas,
que segurou o veneno,
e que o mesmo ser Ihe dera.

Um áspide entre boninas,
entre bosques uma fera,
entre chamas Salamandra,
pois das chamas se alimenta.

Um basalisco, que mata,
lince, que tudo penetra,
feiticeiro, que adivinha,
marau, que tudo suspeita

Enfim o Amor é um momo,
uma invenção, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago
um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhã torna,
hoje solda, amanhã quebra.

Uma vara de esquivanças,
de ciúmes vara e meia,
um sim, que quer dizer não,
não, que por sim se interpreta.

Um queixar de mentirinha,
um folgar muito deveras,
um embasbacar na vista,
um ai, quando a mão se aperta.

Um falar por entre dentes,
dormir a olhos alerta,
que estes dizem mais dormindo,
do que a Iíngua diz discreta.

Uns temores de mal pago,
uns receios de uma ofensa
um dizer choro contigo,
choromingar nas ausências.

Mandar brinco de sangrias,
passar cabelos por prenda,
dar palmitos pelos Ramos,
e dar folar pela festa.

Anel pelo São João,
alcachofras na fogueira,
ele pedir-lhe ciúmes,
ela sapatos, e meias.

Leques, fitas, e manguitos,
rendas da moda francesa,
sapatos de marroquim,
guarda-pé de primavera.

Livre Deus, a quem encontra,
ou Ihe suceder ter Freira;
pede-vos por um recado
sermão, cera, e caramelas.

Arre lá com tal amor!
isto é amor? é quimera,
que faz de um homem prudente
converter-se logo em besta.

Uma bofia, uma mentira
chamar-lhe-ei mais depressa,
fogo salvaje nas bolsas,
e uma sarna das moedas.

Uma traça do descanso,
do coração bertoeja,
sarampo da liberdade,
carruncho, rabuge, e lepra.

É este, o que chupa, e tira
vida, saúde, e fazenda,
e se hemos falar verdade
é hoje o Amor desta era

Tudo uma bebedice,
ou tudo uma borracheira,
que se acaba co dormir,
e co dormir se começa.

O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve temor de artérias.

Uma confusão de bocas
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.

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