Uma viagem
para resolver a tristeza
e não os negócios.
As malas cheias
de roupas novas
e livros adiados.
É preciso partir numa noite de chuva,
para que as árvores de nossa terra
(de repente belas)
não nos agarrem,
não façam chantagem
com nossa provável
e discutível ingratidão.
A mulher adiada
deve ir também:
não há passaporte que consiga
embarcar o tempo perdido.
Alberto da Cunha Melo
LACUNAS DO TEMPO
as lacunas do tempo dançam ao encontro de linguagens, literatura, arte e acolhem todas e todos que passam por aqui
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017
Acalanto para um Rio
Nada passa, nada expira
O passado é
um rio que dorme
e a memória uma mentira
multiforme.
Dorme do rio as águas
e em meu regaço dormem os dias
dormem
dormem as mágoas
as agonias,
dormem.
Nada passa, nada expira
O passado é
um rio adormecido
parece morto, mal respira
acorda-o e saltará
num alarido.
Dora, a Cigarra
em O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa
domingo, 13 de setembro de 2015
Um sopro
A paixão é um sopro
Até onde seu fôlego pode ir?
Como evitar sua dispersão
na ventania dos dias e horas?
A ampulheta derrama
seus últimos grãos de areia
Ah, o tempo!
Todos os minutos e segundos
Até onde seu fôlego pode ir?
Como evitar sua dispersão
na ventania dos dias e horas?
A ampulheta derrama
seus últimos grãos de areia
Ah, o tempo!
Todos os minutos e segundos
atentos
Observando o brilho do olhar
se esvanecer aos poucos
A alma faminta
definhar em água
E navegar sem direção
Observando o brilho do olhar
se esvanecer aos poucos
A alma faminta
definhar em água
E navegar sem direção
...
Ane Montarroyos
terça-feira, 1 de setembro de 2015
MUROS QUE GRITAM
Santa Teresa - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Santa Teresa - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Centro - Rio de Janeiro |
Lapa - Rio de Janeiro |
Santa Teresa - Rio de Janeiro |
Dezembro|2014 - Janeiro|2015
Fotos de Ane Montarroyos
domingo, 30 de agosto de 2015
A mão do amor
Eu queria que a mão do amor
Um dia trançasse
Os fios do nosso destino
Bordadeira fazendo tricô
Em cada ponto que desse
Amarrasse a dor
Em cada ponto que desse
Amarrasse a dor
Como quem faz um crochê
Uma renda, um filó
Unisse as pontas do nosso querer
E desse um nó
A mão do amor [citação] / O que eu não conheço, Maria Bethânia
sábado, 14 de março de 2015
Ao Dia Nacional da Poesia
re-criar é a meta
de um tipo especial
de tradução:
a tradução-arte
mas para chegar à
re-criação
é preciso identificar-se
profundamente
com o texto original
e ao mesmo tempo
não barateá-lo
enfrentar todas as suas
dificuldades
tentar reconstituir
a criação
a partir de cada palavra
som por som
tom por tom
é uma questão de forma
mas também
é uma questão de alma
Augusto de Campos
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015
Yemanjá
Festa de Yemanjá no bairro do Rio Vermelho - Dois de fevereiro by Carybé |
CANTO AO PESCADOR
Jogou sua rede
Oh, pescador
Se encantou com a beleza
Deste lindo mar
É dois de fevereiro
É dia de Iemanjá
Levo-te oferendas
para lhe ofertar
E sem idolatria
o Olodum seguirá
É, como dizia Caymmi
Insigne o homem cantando a encantar
Minha jangada vai sair pro mar
Vou trabalhar
meu bem querer
Sei que o mar da história
é agitado
E o Olodum a onda que virá
Em forma de dilúvio vem
me despertar amor
Em forma de dilúvio vem
Exterminar
Com sequelas racistas
E trazendo ideais de amor e paz
Com sequelas racistas
E trazendo ideais
Oloxum, Inaê
Janaína
E mara, mara, mara,
marabôcaiala, sobá
Viaja ê
Se baila
Me leva Olodum em sua onda
que eu quero ir (viajar...) (pro mar...) - 2a. vez
Viaja ê,
Se baila
Me leva Olodum em sua onda
Que eu quero ir
Olodum, Navio Negreiro
Atracou em Salvador
Trouxe a música emitindo
Ideais da negra flor
E hoje eu sou do mar
Condutor da embarcação
E hoje é sal do mar
Condutor da embarcação
Olodum
domingo, 1 de fevereiro de 2015
Les Fleurs du Mal
LE SOLEIL
Le long du vieux faubourg, où pendent aux masures
Les persiennes, abri des secrètes luxures,
Quand le soleil cruel frappe à traits redoublés
Sur la ville et les champs, sur les toits et les blés,
Je vais m'exercer seul à ma fantasque escrime,
Flairant dans tous les coins les hasards de la rime,
Trébuchant sur les mots comme sur les pavés
Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés.
Ce père nourricier, ennemi des chloroses,
Eveille dans les champs les vers comme les roses;
II fait s'évaporer les soucis vers le ciel,
Et remplit les cerveaux et les ruches le miel.
C'est lui qui rajeunit les porteurs de béquilles
Et les rend gais et doux comme des jeunes filles,
Et commande aux moissons de croître et de mûrir
Dans le coeur immortel qui toujours veut fleurir!
Quand, ainsi qu'un poète, il descend dans les villes,
II ennoblit le sort des choses les plus viles,
Et s'introduit en roi, sans bruit et sans valets,
Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais.
— Charles Baudelaire
THE SUN
Along the outskirts where, close-sheltering
Hid lusts, dilapidated shutters swing,
When the sun strikes, redoubling waves of heat
On town, and field, and roof, and dusty street —
I prowl to air my prowess and kill time,
Stalking, in likely nooks, the odds of rhyme,
Tripping on words like cobbles as I go
And bumping into lines dreamed long ago.
This all-providing Sire, foe to chloroses,
Wakes verses in the fields as well as roses
Evaporates one's cares into the breeze,
Filling with honey brains and hives of bees,
Rejuvenating those who go on crutches
And bringing youthful joy to all he touches,
Life to those precious harvests he imparts
That grow and ripen in our deathless hearts.
Poet-like, through the town he seems to smile
Ennobling fate for all that is most vile;
And king-like, without servants or display,
Through hospitals and mansions makes his way.
— Roy Campbell, Poems of Baudelaire (New York: Pantheon Books, 1952)
O SOL
Ao longo dos subúrbios em que, pelas mansardas,
Persianas fazem véu às luxúrias bastardas,
Quando o sol arroja, imponente, seus punhais
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Eu me ponho a treinar em minha estranha esgrima,
Farejando por tudo os acasos da rima,
Numa frase a tombar como sobre as calçadas,
Ou topando as imagens há muito já sonhadas,
Este pai generoso, a odiar sempre o que enferme,
Pelo campo acorda a rosa como o verme;
Faz as mágoas voar de que as almas são cheias,
Ocupando o pensamento ao encher das colmeias.
Ele é quem dá o alento aos que vêm de muletas,
Dando-lhes um frescor de jóias ou violetas,
Para ordenar depois que amadureça a messe
No coração eterno, o que sempre floresce!
E quando vai à rua, à maneira de um poeta,
Ele sabe aureolar a coisa mais abjeta,
Sozinho e sem rumor, como um rei se introduz
Nos hospitais da mágoa e nas mansões da luz!
— Pietro Nassetti, As Flores do Mal (São Paulo: Martin Claret, 2007)
Le long du vieux faubourg, où pendent aux masures
Les persiennes, abri des secrètes luxures,
Quand le soleil cruel frappe à traits redoublés
Sur la ville et les champs, sur les toits et les blés,
Je vais m'exercer seul à ma fantasque escrime,
Flairant dans tous les coins les hasards de la rime,
Trébuchant sur les mots comme sur les pavés
Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés.
Ce père nourricier, ennemi des chloroses,
Eveille dans les champs les vers comme les roses;
II fait s'évaporer les soucis vers le ciel,
Et remplit les cerveaux et les ruches le miel.
C'est lui qui rajeunit les porteurs de béquilles
Et les rend gais et doux comme des jeunes filles,
Et commande aux moissons de croître et de mûrir
Dans le coeur immortel qui toujours veut fleurir!
Quand, ainsi qu'un poète, il descend dans les villes,
II ennoblit le sort des choses les plus viles,
Et s'introduit en roi, sans bruit et sans valets,
Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais.
— Charles Baudelaire
THE SUN
Along the outskirts where, close-sheltering
Hid lusts, dilapidated shutters swing,
When the sun strikes, redoubling waves of heat
On town, and field, and roof, and dusty street —
I prowl to air my prowess and kill time,
Stalking, in likely nooks, the odds of rhyme,
Tripping on words like cobbles as I go
And bumping into lines dreamed long ago.
This all-providing Sire, foe to chloroses,
Wakes verses in the fields as well as roses
Evaporates one's cares into the breeze,
Filling with honey brains and hives of bees,
Rejuvenating those who go on crutches
And bringing youthful joy to all he touches,
Life to those precious harvests he imparts
That grow and ripen in our deathless hearts.
Poet-like, through the town he seems to smile
Ennobling fate for all that is most vile;
And king-like, without servants or display,
Through hospitals and mansions makes his way.
— Roy Campbell, Poems of Baudelaire (New York: Pantheon Books, 1952)
O SOL
Ao longo dos subúrbios em que, pelas mansardas,
Persianas fazem véu às luxúrias bastardas,
Quando o sol arroja, imponente, seus punhais
Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Eu me ponho a treinar em minha estranha esgrima,
Farejando por tudo os acasos da rima,
Numa frase a tombar como sobre as calçadas,
Ou topando as imagens há muito já sonhadas,
Este pai generoso, a odiar sempre o que enferme,
Pelo campo acorda a rosa como o verme;
Faz as mágoas voar de que as almas são cheias,
Ocupando o pensamento ao encher das colmeias.
Ele é quem dá o alento aos que vêm de muletas,
Dando-lhes um frescor de jóias ou violetas,
Para ordenar depois que amadureça a messe
No coração eterno, o que sempre floresce!
E quando vai à rua, à maneira de um poeta,
Ele sabe aureolar a coisa mais abjeta,
Sozinho e sem rumor, como um rei se introduz
Nos hospitais da mágoa e nas mansões da luz!
— Pietro Nassetti, As Flores do Mal (São Paulo: Martin Claret, 2007)
quarta-feira, 1 de janeiro de 2014
Gerard Manley Hopkins
HEAVEN-HAVEN
A nun takes the veil I have desired to go Where springs not fail, To fields where flies no sharp and sided hail And a few lilies blow. And I have asked to be Where no storms come, Where the green swell is in the havens dumb, And out of the swing of the sea. Gerard Manley Hopkins
PARAGEM-PARAÍSO Uma noviça toma o céu Quis ir para um lugar Onde não falte fonte, Nem grasse gelo áspero e bifronte; Só lírios para olhar. Pedi para ficar Onde o vento não ouse, Silente, a verde vaga ao porto pouse; Longe, o clamor do mar. Tradução de Augusto de Campos |
domingo, 22 de setembro de 2013
Paulo Leminski
BEM NO FUNDO
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
DEEP INSIDE
Tradução de Ane Montarroyos e Greg Berry
Deep inside, in the deep,
in the deep, inside,
we would like
to see our problems
solved by decree
from this date on,
sorrow with no remedy
might as well be void
and in it - perpetual silence
extinguished by law any remorse,
damned you who look back,
behind there is nothing,
and nothing more
but problems are not solved,
problems have many heirs,
and on Sundays they all go to take a walk
the problem, his lady
and other tiny little problems.
sábado, 14 de setembro de 2013
Elizabeth Bishop
ONE ART
The art of losing isn't hard to master;
The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.
Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.
Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.
I lost my mother's watch. And look! my last,
or next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.
I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.
– Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.
UMA ARTE
Tradução de Paulo Henriques Britto
A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois, perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.
terça-feira, 25 de junho de 2013
Silence is all we dread
There's Ransom in a Voice –
But Silence is Infinity.
Himself have not a face.
Emily Dickinson
O Silêncio é o que tememos.
Há um Resgate na Voz –
Mas Silêncio é Infinidade.
Não tem sequer uma Face.
Tradução de Jorge de Sena
domingo, 24 de março de 2013
Tirando de Letra
2013 já começou há muito tempo, mas escolhi hoje e Drummond para a primeira postagem do ano! E se você é um dos amantes da Língua Portuguesa, não deixe de dar uma passada no Tirando de Letra, página destinada àqueles que querem dicas de Língua Portuguesa e Literatura, seja para o dia a dia ou qualquer concurso. As professoras Ana Paula Assumpção e Suelany Ribeiro estarão à disposição para tirar dúvidas.
segunda-feira, 19 de novembro de 2012
Cineclube Amoeda Digital
"O que vale a pena nesta vida?", pergunta o documentarista Dusan Hának à população idosa da República Eslovaca, em 1972. Questionamentos atemporais como este fazem parte da proposta de retomada do cineclube Amoeda Digital, que exibe na próxima terça-feira (20), o filme “Obrazy starého sveta”.
A ideia do cineclube Amoeda Digital nesta temporada de um ano é assistir a filmes de nacionalidades diversas e pouco exploradas pelo circuito comercial de cinema e, em seguida, debatê-los a partir do ponto de vista de cineastas pernambucanos. O primeiro convidado será Alan Oliveira, diretor do premiado curta-metragem "Di Melo - o imorrível". Para as próximas sessões foram confirmadas as presenças de Cláudio Assis, Daniel Bandeira, Marcelo Pedroso e Antônio Carrilho.
Serviço
CC Amoeda Digital exibe “Obrazy starého sveta” (Pictures of the old world)Dia: Terça-feira, 20 de novembro.
Hora: 20h
Convidado: Alan Oliveira
Bar Novo Pina - Rua da Moeda, s/n. Recife Antigo
Entrada gratuita
Contatos
amoedadigital@gmail.com
http://www.facebook.com/pages/
@AmoedaDigital
domingo, 18 de novembro de 2012
Today | Hoje
sexta-feira, 16 de novembro de 2012
A vida como ela é...
Estou longe, mas não posso deixar de prestar minha homenagem ao pernambucano Nelson Rodrigues, dramaturgo homenageado da Fliporto 2012.
noiva da morte
Era o único varão numa família de mulheres. E, desde garoto, ouvia dizer:
— Alipinho não casa! Nós não deixamos Alipinho casar...
O Alipinho era ele. Cresceu num ambiente de absoluta predominância feminina, cercado de mulheres por todos os lados. Foi tiranizado, ferozmente, pela mãe, irmãs, tias e primas. Quase não saía de casa, quase não ia à rua. A parentela vivia no terror de outros meninos; fazia advertências: "Você não brinca com aquele menino, não. Ele diz nome feio, meu filho." E o Alipinho, desde os quatro anos, sabia que dizer palavrão é pecado, que "Papai do Céu não gosta". De vez em quando, o pai, vendo o garoto estiolar-se entre saias, explodia:
— Ora, bolas! Vocês estão pensando o quê? O Alipinho é homem! — E enchia a boca, com a palavra: — Homem!
Mas as mulheres, inclusive a mãe, se atiravam em pânico, numa pavorosa histeria coletiva. Agarravam-se ao menino, absorviam o menino: a mãe, em crise,
frenética, berrava: "O filho é meu!" E atirava à cara do marido o grande argumento:
— Fui eu quem teve as dores! Eu!...
O marido, mascando o charuto apagado, sentia-se impotente diante dessa conspiração feminina. Saía, furioso, batendo com as portas e uivando: "Vão pro diabo que as carregue!" Na ausência dele, rosnava-se, pelos cantos: "Homem mau!"
a flor
Enfim, o pai de Alipinho caiu de cama. E o engraçado é que, desde o primeiro momento, não teve dúvidas. Convocou a mulher, as filhas, o próprio Alipinho, e disse, sem dramaticidade, com ar apenas informativo: "Pessoal, eu vou morrer." Houve protestos e choradeira, mas ele insistiu, sóbrio e digno: "Estou liquidado." E, de fato, o médico mandou fazer vários exames e constatou-se apenas isto: "Câncer." Aventurou-se, a medo, com pudor, a pergunta: "Quantos meses de vida?" Resposta: "Três." Houve a dor necessária e compreensível. E mais do que isso: o espanto, o medo. Realmente, a morte datada impressiona e assusta muito mais. Havia, também, de uma maneira inconfessada, um sentimento de alívio. Com a morte do pai, que a ciência prometia, a educação de Alipinho deixava de ser um problema agudo e desesperador. O pai exigia, para o filho, uma educação de homem; dizia mesmo: "Quero que meu filho beba, fume, diga palavrões!" Já a mãe, com o apoio compacto das filhas, sonhava com um Alipinho doce, respeitador, doméstico. Anunciava, francamente: "Se meu filho chegasse tarde em casa, eu morria do coração!"
O pai morreu no fim dos três meses. Antes, porém, acusou a mulher: "Você é uma criminosa. Você está transformando meu filho num maricás. Escreve o que eu vou dizer: meu filho vai ser um degenerado." Ela ouviu tudo isso, sem protesto, por se tratar de um moribundo; mas trançou os dedos, em figa. Quando voltou do cemitério, não pôde evitar um suspiro de alívio. Ia poder, enfim, educar o filho à sua maneira. Alipinho estava, na época, com 13 anos e era, realmente, uma flor.
último desejo
Mas o que ninguém sabia era de uma conversa que, antes de morrer, o pai de Alipinho tivera com o Dr. Assunção, médico da família. Já com o pé na sepultura, o moribundo dispensou-se de quaisquer cerimônias ou hipocrisias: disse o diabo. Começou assim:
— Doutor, vou lhe fazer um último pedido.
— Pois não.
O outro, no seu fôlego curto, ofegava: "É o seguinte: o senhor sabe que a cretina da minha mulher..." Ao ouvir a expressão "cretina", o médico pigarreou; mas o doente prosseguiu: "... a cretina da minha mulher o respeita muito, ouve muito o que o senhor diz." O médico admitiu: "Mais ou menos." Continuou o doente: "Pois bem. Quando chegar a época, eu queria que o senhor usasse a sua influência e fizesse meu filho casar." O moribundo encarou o médico: "E meu último desejo, doutor. Eu lhe peço por tudo..." E numa derradeira irritação terrena, o infeliz ainda chamou o filho de "essa besta" e a mulher de "débil mental". Dr. Assunção balbuciou:
— Pois não. Prometo.
— Jura?
— Juro. Farei o que estiver ao alcance. Pode ficar descansado.
No fundo o médico gostou de ser o depositário de um "último desejo". Lera, não sei onde, que "a um morto não se recusa nada". Em casa, com a mulher, Dr. Assunção contou o caso e, dissimulando a vaidade, suspirou:
— Um abacaxi tremendo!
o abacaxi
Dr. Assunção julgava-se muito hábil e, piscando o olho, soprou para a esposa: "Neste caso, tenho que ser maquiavélico..." Sintoma do seu maquiavelismo foram os meios insidiosos que adotou para realizar seus desígnios. Ia à casa do Alipinho com mais freqüência e opinava sobre tudo, inclusive sobre o preço do feijão. Queria ter uma participação cada vez maior na vida da família, familiarizar-se com os assuntos da casa. Um belo dia, começou de maneira indireta: "O casamento é uma necessidade social e natural." A própria frase o encantou pela sonoridade. Virou-se para a mãe do Alipinho e fez a interpelação cordial: "A senhora não acha?" Esperou a concordância, mas a outra contra-atacou: "Ah, não. Eu não acho." O médico espantou-se: "Como?" Ela esclareceu:
— Eu acho o seguinte: a mulher deve casar... O homem, não.
— Ora veja!
Ela teimou dardejando um olhar para o Alipinho: "Só a mulher precisa casar." Um pouco desconcertado, o Dr. Assunção resolveu ser hábil: protelou o assunto. Em casa, com a mulher, numa auto-satisfação profunda, admitiu:
— Eu sou maquiavélico! Eu sou maquiavélico!
Mas o fato é que se apaixonara pela missão que, inicialmente, ele próprio achara um "abacaxi temendo". Interessara a mulher na causa; e ela o estimulava: "Olha, Fulano, tu não podes fracassar." Ele dava garantias:
— Deixa por minha conta.
alipinho
Enquanto isso, o Alipinho ia crescendo, cada vez mais agarrado às saias da mãe e das irmãs. Evitava companhias masculinas e, a rigor, seu círculo de relaçõesera estritamente feminino. Sentia-se bem lidando moças e senhoras, merecia delas um tratamento de igual para igual. E ninguém mais fino, mais educado, mais
doce. Dizia-se, a seu respeito: "É uma dama!" Quando, certa vez, o Dr. Assunção sugeriu que um rapaz "deve ter modos de homem", houve um alarido de mulheres. Frenética, a mãe do Alipinho saltou:
— Não, senhor! Absolutamente! O homem não precisa ser cafajeste! Pois eu estou muito satisfeita com os modos do meu filho!...
O Alipinho tinha, então, 18 anos de idade. Depois de alguns dias de confabulação com a mulher, o Dr. Assunção achou que era o momento de agir de maneira mais efetiva. Chamou o Alipinho ao consultório e os dois tiveram uma interminável conversa. O médico quis saber se ele tinha tido alguma namorada. Não. Então, o doutor, impressionado, resolveu ser mais objetivo e contundente. Olhou para os lados, baixou a voz e soprou a confidencia heróica:
— Pois, eu, na tua idade, não me escapava nem rato. Dava em cima de tudo quanto era empregada!
Alipinho voltou para casa atônito. A verdade é que as confidencias pessoais do médico lhe haviam embrulhado o estômago. Mas Dr. Assunção não perdeu mais tempo. Debatia o assunto matrimonial com a maior veemência. Alegava, polêmico: "É uma lei da natureza!" Ao que replicava a mãe do rapaz:
— Eu quero que a natureza vá lamber sabão!
Ele recorria ao "crescei e multiplicai-vos". Finalmente, a família capitulou pelo cansaço físico. Chorando, a mãe chamou o Alipinho: "Tu vais casar, meu filho." Suspirou o rapaz numa docilidade de cortar o coração: "A senhora é quem sabe."
a pequena
Começou, então, a procura frenética da namorada. Procura daqui, dali, acabaram descobrindo uma tal Marta, da idade do rapaz. Era namoradeira que Deus te livre, mas dizia-se, com otimismo: "Muda com o casamento." Quem nadava em ouro e mel era o Dr. Assunção. Via, no caso, uma vitória pessoal; invocava o testemunho da esposa: "Viste a minha habilidade?" Ela pasmava de tamanho maquiavelismo. E continuavam os preparativos do casamento. Alipinho olhava, com uma espécie de terror, a noiva, cheia de elã, de apetite vital. Entre os dois, ela era quem tinha a voracidade dos beijos. Ele, emagrecia e, de vez em quando, precisava tomar coramina, por causa das palpitações. Só deu opinião uma vez: na escolha do vestido da noiva. Exigiu um modelo de Rainha, de Princesa, de Fada, algo de inimaginável e inesquecível. Três dias antes do casamento, o vestido ficou pronto. Então, sem dizer nada a ninguém, Alipinho foi buscá-lo.
Carregou o embrulho como uma preciosidade. Saltou do táxi, entrou em casa pelos fundos, sem que ninguém o percebesse. Aliás toda a família, nesse dia, fora para a casa da noiva.
as núpcias
Sozinho, em casa, Alipinho não precisou ter pressa. Tomou um banho, com sabonete espumoso. Depois, perfumou-se com água de colônia, diante do espelho. Da água de colônia passou ao pó-de-arroz, ao ruge, ao batom. E, finalmente, pôs o vestido de noiva, inclusive a grinalda, o véu. Apanhou um disco da marcha nupcial, que comprara na véspera, e o colocou na vitrola. Ao mesmo tempo, acionou o dispositivo que faria repetir o disco, indefinidamente. Feito isto, deu todo o volume. Horas depois, chega a família. Já a vizinhança estava alucinada com o disco da marcha nupcial. Desligam a vitrola. Uma das irmãs vai ao banheiro e lá vê aquele vulto branco suspenso. Grita, rola em ataque. Todos correm, num atropelo. Inclusive
os vizinhos invadem a casa. Vestido de noiva, com véu e grinalda, enforcara-se Alipinho.
sábado, 1 de setembro de 2012
E você, sabe lá o que é isso?
E você, sabe lá o que é isso?
Produzido de forma totalmente independente e financiado com recursos próprios, o vídeo documentário "Sabe lá o que é isso”, que será lançado no próximo dia 6 de setembro na mostra de cinema da MIMO - Mostra Internacional de Música de Olinda, foi fruto da inquietação da banda pernambucana Babi Jaques & Os Sicilianos e de seus parceiros da Candiero Produções Audiovisuais.
Em homenagem aos 80 anos do Bloco de carnaval Batutas de São José, a banda convida o Maestro Spok para fazer uma nova versão do Hino de Batutas. Entre guitarras e distorções, o grupo investiga a evolução musical do frevo levantando uma discussão acerca das inovações estéticas ocorridas com esta manifestação ao longo do tempo. Ainda dentro da narrativa, o filme conta um pouco da história do carnaval de rua do Recife, da destruição física do bairro de São José na década de 1970 e dos 80 anos de resistência dos Batutas de São José. A produção conta com a participação do jornalista José Teles, do escritor e compositor Marcelo Varella e do radialista Hugo Martins, a enciclopédia viva do frevo.
O filme é dirigido e roteirizado pelo cineasta e escritor Wilson Freire, autor e diretor de dezenas de produções, dentre elas o internacionalmente premiado "As Três Marias"e os documentários "Miró, preto, pobre, poeta e periférico" e "Zé Monteiro, o homem que venceu as 5 mortes". Como escritor, Wilson tem mais de 10 livros publicados e diversas canções em parceria com ícones da música brasileira, dentre elas estão "Chegança" e "Na pancada do Ganzá", sucessos na voz de Antônio Carlos Nóbrega.
A produção deste documentário vem para reforçar ainda mais o intuito da Babi Jaques & Os Sicilianos quanto à produção da arte nas mais diversas linguagens, firmando parcerias e agregando artistas independentes, provando mais uma vez que é possível, através de movimentação, vontade e diálogo, produzir e difundir arte sem grandes orçamentos. O grupo, que está gravando o seu primeiro disco, rodou todo o país durante dois anos realizando uma turnê nacional de lançamento e divulgação de seu primeiro registro fonográfico - Um EP contendo 7 faixas, gravado, produzido e distribuído de forma independente pelos próprios membros da banda - que passou por todas as regiões do país, contando com mais de 100 apresentações em 60 cidades de 13 estados brasileiros e igualmente conduzida e produzida pelo grupo, onde recebeu 15 premiações em alguns dos mais importantes festivais de música e mostras competitivas do Brasil.
ASSISTA O TRAILLER DO DOCUMENTÁRIO NO LINK: http://vimeo.com/ 48528758
EXIBIÇÕES DO FILME NA MIMO: 6 de setembro às 18hs no Seminário de Olinda e reprise 7 de setembro às 18hs no Mercado da Ribeira.
FESTA DE LANÇAMENTO: 6 de setembro às 22hs no Terraço de Olinda com show da banda Babi Jaques e Os Sicilianos. Obs: O espaço do Terraço virará o palco e o evento será virada para a Rua ABERTO AO PÚBLICO.
Para Mais informações:
COISA NOSTRA PRODUÇÕES
81 8856 8882 / 9546 9595
quinta-feira, 5 de julho de 2012
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